Quando nos conhecemos irritava-me
esse teu risinho, as tuas palavras por vezes amargas, a tua personalidade
forte. A profunda irritação deu origem a um súbito interesse, vontade
inexplicável de estar contigo de todas as formas e mais algumas. O meu cérebro
dizia “não”, mas o coração não assentia.
Rapidamente
tornaste-te o centro da minha vida. Era contigo que queria estar. A tua beleza
era inigualável. Ninguém conseguia sorrir da maneira como sorrias, transmitir
tanta emoção através dos olhos selvagens que sempre tiveste. Eu, que era um
autêntico mulherengo, aliás sem problemas em o admitir, rendi-me aos teus
encantos, pelo facto de seres diferente, desafiante.
Desafio
que abracei rapidamente e inteligentemente, acabando por não me arrepender nem
um segundo da decisão que tomei: ficar contigo, fazer-te feliz. Essa era a
minha principal tarefa. O resto ficava para segundo plano.
Sei
que ficaste muitas vezes zangada e magoada comigo porque te desiludi, falhei na
minha missão. Sei que errei e não foi pouco, as desculpas foram mais que
muitas. Mas perdoas-me, meu amor?
Os
nossos anos de juventude foram os melhores. Sempre metidos em grandes
aventuras, lembras-te? Aquela vez em que arranjamos tamanha confusão com os
nossos amigos que fomos parar todos à esquadra? Rimo-nos tanto. Estávamos a
tentar ser rebeldes, desafiando a autoridade. Foi divertido. Resultou foi num
“bom” raspanete dos nossos pais, que se já eram contra o nosso namoro, ainda
ficaram mais desagradados. Nunca acharam que fosse homem para ti. Éramos muito
diferentes, as nossas famílias tinham um atrito e nós sempre ficámos no meio do
problema sem termos culpa nenhuma. Além disso, eles nunca acharam que eu era
capaz de dar-te a vida que tu merecias.
Mas
eu e tu não precisávamos de ter muito dinheiro, não precisávamos de ser muito
inteligentes, os melhores. Para nós, bastava sermos os melhores um com outro.
Fazermos o que gostávamos, independentemente de ser ou não o mais acertado, o
que fugia ao rigor estritamente calculado pela sociedade. Nós odiávamos regras.
Ainda odeio. Não posso ser completamente livre para fazer o que quiser, sem
julgamentos. Há sempre alguém com um olhar de desdém, como se fossem o cúmulo
da perfeição.
Perfeita
só mesmo tu, minha querida. Lembro-me como notei ainda mais isso no dia do
nosso casamento. Quando estavas a caminhar até ao altar, senti que não me iria
arrepender de te ter como minha mulher. Seria o homem mais feliz. Ah… logo eu
que sempre foi cético em relação a tudo o que fosse amor, fiquei prendido na
tua teia. No teu corpo nu, esculpido como de arte se tratasse. Que fantástica,
pensei eu…
Deste-me
mais duas peças fundamentais para a minha caminhada para a felicidade. Os
nossos filhos. Não cabia em mim de contente. “Papá babado”, dizias-me tu
muitas vezes, recordas-te? Sempre preocupado com eles. Mesmo agora quando têm
40 e 45 anos, continuo a sentir a responsabilidade de saber tudo sobre a vida
deles. Como vai tudo. Eles chamam-me “chatinho”. É verdade, eles até têm razão.
Sou um velho rabugento. A idade pesa e estou quase a ir, por isso tenho de
garantir que eles ficam bem.
Foram
anos muito felizes, em que tivemos algumas dificuldades, mas conseguimos
ultrapassar tudo o que se ia interpondo, recuperando a harmonia. Mas nos
últimos meses, tudo mudou indescritívelmente, de forma radical. O teu rosto
carregava um sofrimento que eu não conseguia apaziguar. O brilho do teu olhar
já não era o mesmo. Sentia-te a ir, apesar de estares junto a mim. Abraçava-te
todas as noites para ter a certeza que não irias fugir. Como se eu fosse forte
o suficiente para quebrar o drama que estava a acontecer nas nossas vidas.
Maldita
doença! Consumia-te dia após dia, e eu sentia-me impotente… sem nada para dizer
ou fazer. As palavras que achava certas e que iam melhorar o teu estado de
espírito não resultavam. Continuavas na mesma. Com uma tristeza que nunca vi em
ti. Choravas baixinho à noite na cama, tentando que não se ouvisse, para que não
soubesse que estavas mesmo triste, sem esperança. Mas eu sabia. Conhecia-te
melhor que ninguém. Normalmente sabia o que te passava pela mente apenas
através das tuas simples reações. Durante estes anos todos, fui descobrindo
cada bocadinho de ti e tão feliz que fiquei por isso, meu amor…
Não
resististe, a doença venceu-te e a tua morte foi o momento mais desesperante
que ocorreu na minha vida. Lá no fundo já sabia que mais tarde ou mais cedo
isso iria acontecer. Mas não queria. Não estava preparado para te perder assim
desta maneira. Aliás de maneira nenhuma. Lembraste de me teres prometido que
não ias desistir de lutar, independentemente das circunstâncias? Não cumpriste
com o que disseste. Ias desistindo um pouco todos os dias. Mas não te culpo. Eu
teria sido mais fraco.
Foi
difícil a despedida. Segurei na tua mão, enrugada, apenas um sinal de
velhice, sem importância. Mesmo diferente, continuavas linda, majestosa. Mesmo
que os outros não achassem, eu achava. Eles também não te conheciam como eu
conhecia, não acompanharam a mudança no teu corpo e na tua mente. Eles nada na
verdade sabiam. Apenas que tinha partido uma senhora simpática, que estava
sempre pronta a ajudar os outros. Tu não eras só isso. Eras muito mais. Mas
eles não sabiam, por isso não compreendiam. Ninguém o conseguia fazer. Éramos
só tu e eu. Agora sou só eu. Sozinho. Deus levou-te, minha querida. Eu sei que Ele vai cuidar de ti, por mim.
Eu,
por agora fico por aqui, na nossa casa. Tudo são recordações. Cada metro
quadrado, suscita uma lembrança de diversos momentos nossos. O soalho range,
apenas se ouve os meus pesados passos. Silêncio absoluto. As lágrimas teimam em
cair. Não consigo evitar. Contigo era tudo e agora, sem ti, sou nada. Coração
vazio.
Posso
pedir-te uma coisa? Enquanto estiver vivo, cuidas de mim, como sempre fizemos?
Mesmo longe podes fazer-me sentir perto de ti? Não te esqueças de mim. Isto não
é uma despedida, é um até já. Esperas por mim? Esperas?
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