quarta-feira, 27 de abril de 2016

Silêncio absoluto

      Quando nos conhecemos irritava-me esse teu risinho, as tuas palavras por vezes amargas, a tua personalidade forte. A profunda irritação deu origem a um súbito interesse, vontade inexplicável de estar contigo de todas as formas e mais algumas. O meu cérebro dizia “não”, mas o coração não assentia.
     Rapidamente tornaste-te o centro da minha vida. Era contigo que queria estar. A tua beleza era inigualável. Ninguém conseguia sorrir da maneira como sorrias, transmitir tanta emoção através dos olhos selvagens que sempre tiveste. Eu, que era um autêntico mulherengo, aliás sem problemas em o admitir, rendi-me aos teus encantos, pelo facto de seres diferente, desafiante.
     Desafio que abracei rapidamente e inteligentemente, acabando por não me arrepender nem um segundo da decisão que tomei: ficar contigo, fazer-te feliz. Essa era a minha principal tarefa. O resto ficava para segundo plano.
      Sei que ficaste muitas vezes zangada e magoada comigo porque te desiludi, falhei na minha missão. Sei que errei e não foi pouco, as desculpas foram mais que muitas. Mas perdoas-me, meu amor?
      Os nossos anos de juventude foram os melhores. Sempre metidos em grandes aventuras, lembras-te? Aquela vez em que arranjamos tamanha confusão com os nossos amigos que fomos parar todos à esquadra? Rimo-nos tanto. Estávamos a tentar ser rebeldes, desafiando a autoridade. Foi divertido. Resultou foi num “bom” raspanete dos nossos pais, que se já eram contra o nosso namoro, ainda ficaram mais desagradados. Nunca acharam que fosse homem para ti. Éramos muito diferentes, as nossas famílias tinham um atrito e nós sempre ficámos no meio do problema sem termos culpa nenhuma. Além disso, eles nunca acharam que eu era capaz de dar-te a vida que tu merecias.
       Mas eu e tu não precisávamos de ter muito dinheiro, não precisávamos de ser muito inteligentes, os melhores. Para nós, bastava sermos os melhores um com outro. Fazermos o que gostávamos, independentemente de ser ou não o mais acertado, o que fugia ao rigor estritamente calculado pela sociedade. Nós odiávamos regras. Ainda odeio. Não posso ser completamente livre para fazer o que quiser, sem julgamentos. Há sempre alguém com um olhar de desdém, como se fossem o cúmulo da perfeição.
     Perfeita só mesmo tu, minha querida. Lembro-me como notei ainda mais isso no dia do nosso casamento. Quando estavas a caminhar até ao altar, senti que não me iria arrepender de te ter como minha mulher. Seria o homem mais feliz. Ah… logo eu que sempre foi cético em relação a tudo o que fosse amor, fiquei prendido na tua teia. No teu corpo nu, esculpido como de arte se tratasse. Que fantástica, pensei eu…
     Deste-me mais duas peças fundamentais para a minha caminhada para a felicidade. Os nossos filhos. Não cabia em mim de contente. “Papá babado”, dizias-me tu muitas vezes, recordas-te? Sempre preocupado com eles. Mesmo agora quando têm 40 e 45 anos, continuo a sentir a responsabilidade de saber tudo sobre a vida deles. Como vai tudo. Eles chamam-me “chatinho”. É verdade, eles até têm razão. Sou um velho rabugento. A idade pesa e estou quase a ir, por isso tenho de garantir que eles ficam bem. 
     Foram anos muito felizes, em que tivemos algumas dificuldades, mas conseguimos ultrapassar tudo o que se ia interpondo, recuperando a harmonia. Mas nos últimos meses, tudo mudou indescritívelmente, de forma radical. O teu rosto carregava um sofrimento que eu não conseguia apaziguar. O brilho do teu olhar já não era o mesmo. Sentia-te a ir, apesar de estares junto a mim. Abraçava-te todas as noites para ter a certeza que não irias fugir. Como se eu fosse forte o suficiente para quebrar o drama que estava a acontecer nas nossas vidas.
     Maldita doença! Consumia-te dia após dia, e eu sentia-me impotente… sem nada para dizer ou fazer. As palavras que achava certas e que iam melhorar o teu estado de espírito não resultavam. Continuavas na mesma. Com uma tristeza que nunca vi em ti. Choravas baixinho à noite na cama, tentando que não se ouvisse, para que não soubesse que estavas mesmo triste, sem esperança. Mas eu sabia. Conhecia-te melhor que ninguém. Normalmente sabia o que te passava pela mente apenas através das tuas simples reações. Durante estes anos todos, fui descobrindo cada bocadinho de ti e tão feliz que fiquei por isso, meu amor…
      Não resististe, a doença venceu-te e a tua morte foi o momento mais desesperante que ocorreu na minha vida. Lá no fundo já sabia que mais tarde ou mais cedo isso iria acontecer. Mas não queria. Não estava preparado para te perder assim desta maneira. Aliás de maneira nenhuma. Lembraste de me teres prometido que não ias desistir de lutar, independentemente das circunstâncias? Não cumpriste com o que disseste. Ias desistindo um pouco todos os dias. Mas não te culpo. Eu teria sido mais fraco.
    Foi difícil a despedida. Segurei na tua mão, enrugada, apenas um sinal de velhice, sem importância. Mesmo diferente, continuavas linda, majestosa. Mesmo que os outros não achassem, eu achava. Eles também não te conheciam como eu conhecia, não acompanharam a mudança no teu corpo e na tua mente. Eles nada na verdade sabiam. Apenas que tinha partido uma senhora simpática, que estava sempre pronta a ajudar os outros. Tu não eras só isso. Eras muito mais. Mas eles não sabiam, por isso não compreendiam. Ninguém o conseguia fazer. Éramos só tu e eu. Agora sou só eu. Sozinho. Deus levou-te, minha querida. Eu sei que Ele vai cuidar de ti, por mim.
     Eu, por agora fico por aqui, na nossa casa. Tudo são recordações. Cada metro quadrado, suscita uma lembrança de diversos momentos nossos. O soalho range, apenas se ouve os meus pesados passos. Silêncio absoluto. As lágrimas teimam em cair. Não consigo evitar. Contigo era tudo e agora, sem ti, sou nada. Coração vazio.
       Posso pedir-te uma coisa? Enquanto estiver vivo, cuidas de mim, como sempre fizemos? Mesmo longe podes fazer-me sentir perto de ti? Não te esqueças de mim. Isto não é uma despedida, é um até já. Esperas por mim? Esperas?



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